Texto de Nereide Santa Rosa – @nereidesantarosa
Na literatura, assim como na moda, os detalhes são tudo. Cada palavra ou tecido escolhidos pelo autor e pelo estilista contribuem para a construção de uma representação simbólica sobre seus valores, sua cultura, e sua história, cada um em seu contexto. Porém, em muitos casos, as representações de ambas as linguagens se mesclam e interagem entre si.
Na literatura, a moda pode definir o universo ficcional dos personagens. Entre esses detalhes, o vestuário ocupa um papel crucial — ainda que, muitas vezes, sutil. A forma como um personagem se veste pode revelar muito sobre sua classe social, época histórica, personalidade, conflitos internos e até mesmo seu destino. O vestuário, nesse contexto, deixa de ser mero adorno e torna-se uma linguagem simbólica que enriquece a narrativa.
O filósofo francês Roland Barthes, em “O Sistema da Moda” (1967), sugeriu que as roupas funcionam como linguagem, com seu próprio vocabulário e gramática. Essa noção é plenamente aplicável à literatura: os personagens usam roupas que comunicam — muitas vezes de forma mais eficiente que os diálogos — aquilo que pensam, sentem ou desejam esconder.
A roupa é uma das formas mais visíveis de distinção social. Desde as epopeias clássicas até os romances contemporâneos, escritores utilizam o vestuário para situar o personagem em um determinado tempo e espaço, além de revelar sua posição dentro da hierarquia social.
No romance “Orgulho e Preconceito” (1813), de Jane Austen, o vestuário desempenha um papel importante na diferenciação entre os personagens da aristocracia rural inglesa. As roupas das irmãs Bennet, especialmente das mais novas, são descritas com simplicidade, indicando sua situação econômica menos favorecida. Em contraste, as vestimentas de personagens como Caroline Bingley são ricas e elegantes, usadas como forma de afirmar superioridade social e afastar aqueles que ela considera inferiores. A moda regencial britânica serve, aqui, como um código silencioso que comunica intenções e julgamentos entre os personagens.
Entre os romances publicados pela Underline Publishing, editora norte-americana, o vestuário faz parte da trama em vários momentos. Como no livro “Dom Casmurro, the movie” de Toni Brandão quando o autor descreve Capitu e Bentinho adolescentes: “Capitu é descrita como alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado.” E na cena do primeiro beijo entre Capitu e Bentinho: “Capitu usa um vestido cor de vinho com cintilância encantadora.” Esses trechos destacam o uso da roupa como parte da caracterização de Capitu em diferentes momentos da narrativa.
E no romance histórico “A mais bela Travessia”, quando o escritor Marcos Rossi, descreve a cena do soldado paulista em plena Revolução de 32: “ Zé Quinho então buscou uma muda de roupas civis que trazia consigo e a passou a Matteo, explicando: _ Coloque essa camisa e essa calça. Sem uniforme o senhor terá melhores chances de chegar até a próxima cidade.
Ainda tem muito soldado mineiro por aí perdido pela mata que não sabe que a guerra acabou e podem atacá-lo se o virem vestido como soldado paulista. Depois de se vestir, venha comigo.”
E ainda no livro “Contos Envenenados” do escritor Edson Gabriel Garcia, onde o vestuário define a personagem numa trama de suspense envolvente: “Enquanto falavam, procurando convencer o amigo de que daria conta da empreitada, passou por eles, na calçada do bar, uma moça morena, de cabelos pretos encaracolados, um belo corpo dentro do vestido de cintura fina e de bolas pretas. Uma bela moça, deveras bela. Naquele dia, além do belo traje, que combinava com os sapatos de salto alto e grosso, o decote acentuado da roupa mostrava um cordão de material não identificado que sustentava um pequeno berloque, do tamanho de uma moeda grande partida ao meio.”
Em 1885, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) publicou o artigo Philosophy of Dress no New York Tribune. “um manifesto acerca da moda feminina, tema que ele levava tão a sério, que cuidou ele mesmo de desenhar o vestido de noiva de sua esposa Constance Lloyd (1858- 1898) com quem se casou em 1884, o seu propósito era evitar que a mesma se apresentasse na cerimônia (…).
Anos mais tarde, o estilista brasileiro Ronaldo Fraga se inspirou em grandes escritores brasileiros para desenvolver suas coleções de alta-moda, tal como a obra literária Grande sertão: Veredas de Guimaraes Rosa para a sua coleção A cobra que Ri, uma coleção de roupas com aproximadamente 35 modelos na passarela.
Mais do que representar o contexto externo do personagem, o vestuário pode também refletir seu mundo interior. Em muitos casos, roupas revelam estados psicológicos, desejos reprimidos ou posturas diante da vida.
O vestuário pode ainda ser utilizado como recurso simbólico poderoso. Por vezes, é a peça de roupa que carrega o sentido da narrativa, ou que marca a passagem do tempo e a transformação do personagem.
A literatura é uma arte da sugestão, e os bons escritores sabem utilizar cada elemento descritivo como instrumento de construção de significado. O vestuário, nesse sentido, é um recurso narrativo multifacetado. Ele informa, oculta, revela, transforma. Pode ser símbolo de classe, expressão de identidade, reflexo psicológico ou instrumento de crítica social.
A Moda como linguagem na Literatura revela como os personagens se vestem — ou são vestidos por seus autores —,e o leitor atento descobre camadas adicionais de sentido. A roupa, longe de ser acessório, se torna parte essencial da alma dos personagens.


















